O ano de 2021 foi o melhor da história para o setor de carros elétricos no Brasil. E 2022 começou no mesmo ritmo. Foram vendidas 34,9 mil unidades de veículos eletrificados no ano passado, de acordo com informações da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE).
A frota ainda é pequena se comparada aos mais de 1,9 milhões de carros tradicionais vendidos no mesmo período, mas os números representam um marco para o setor no país. As vendas superaram todas as previsões com um aumento de 77% em comparação a 2020 e 195% a 2019.
Com o setor embalado, apenas neste ano já foram 2,5 mil emplacamentos, o que representa um crescimento de 93% em relação ao mesmo período de 2021. A expectativa é que a frota, hoje de 79,8 mil automóveis, passe de 100 mil no início do segundo semestre.
Apesar da disparidade em comparação aos veículos tradicionais, Eduardo de Sousa, diretor de infraestrutura da ABVE, acredita que o consumidor brasileiro começou a se sentir mais confiante com a nova tecnologia.
“Os números absolutos ainda são pequenos, mas a curva de crescimento nos últimos anos é exponencial”, diz. “Os eletrificados bateram um recorde e chegaram a um marketshare de 1,8% de total do mercado doméstico brasileiro. No mesmo período, no mundo, os veículos elétricos atingiram nada menos do que 9% das vendas globais”, afirma.
Apesar do crescimento desse mercado, a adesão aos carros elétricos ainda não é para todos. E isso se deve, em grande parte, ao preço cobrado por esse futuro sustentável.
O carro elétrico mais barato à venda no país pode ser encontrado por R$ 160 mil, enquanto os lançamentos mais recentes passam de R$ 400 mil. O modelo mais caro, da marca Porsche, não sai por menos de R$ 1 milhão.
Em um cenário de câmbio desvalorizado, o que mais encarece o produto é a bateria, que representa quase metade do preço dos carros elétricos.
Segundo Sousa, há dez anos o custo do kWh de uma bateria para carros elétricos girava em torno de US$ 1.000, número que caiu para US$ 132 em 2021. Um estudo da Bloomberg prevê que quando esse custo ficar abaixo de US$ 100 o preço do veículo elétrico já será equivalente ao similar à combustão. A previsão é que isso ocorra por volta de 2025.
Especialistas afirmam que umoutro fator que encarece o carro elétrico no Brasil é a ausência de um Plano Nacional focado em eletromobilidade. “Falta ao Brasil uma política nacional de transição para o transporte elétrico, a exemplo do Green Deal da União Europeia, dos últimos planos quinquenais da China e do programa de mobilidade elétrica lançado pelo governo Biden nos Estados Unidos no ano passado”, diz Sousa.
Um pequeno exemplo dessa falta de diretrizes nacionais é a cobrança de energia. Hoje, não está claro como a energia das estações públicas de recarga rápida podem ser cobradas do consumidor final.
“Esta indefinição impede que sejam realizados os investimentos em recarga pública rápida por parte do empresário, dado que se torna impossível calcular o retorno de um negócio cujas regras não se conhecem”, diz o diretor da ABVE.
Em outros países o boom dos carros elétricos foi impulsionado por políticas agressivas dos governos locais, que ofereceram benefícios no Imposto de Renda aos compradores. Na Alemanha, o desconto chegou a € 4 mil; na França, entre € 6 mil e € 8,5 mil; no Reino Unido, £ 3,5 mil. Na China, em torno de US$ 3 mil.
“Uma política idêntica é impensável no Brasil, pelos problemas econômicos e fiscais do país. Por isso, o crescimento dos carros elétricos está sendo relativamente mais lento do que o dos principais mercados globais”, afirma Sousa.
Apesar da ausência de um plano nacional claro para adoção desse modo de transporte, há alguns marcos para o setor no país.
Em 2015, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) zerou o Imposto de Importação dos veículos 100% elétricos e reduziu de 35% para entre zero e 7% as alíquotas dos veículos elétricos híbridos.
Em 2018, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) regulamentou o mercado de recarga elétrica de veículos no Brasil, a preços livremente negociados. Também naquele ano, o então presidente Michel Temer (MDB) sancionou uma lei que instituiu o programa Rota 2030, que adotou uma série de incentivos à eficiência energética dos veículos, beneficiando os carros elétricos, e reduziu as alíquotas de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos veículos elétricos e híbridos, que passaram de uma média em torno de 25% para médias em torno de 9%, 12% e 13%, dependendo do peso e motorização.
Em pelo menos sete estados brasileiros, já há legislação que permite abater ou isentar a cobrança de IPVA para veículos elétricos e híbridos. Em São Paulo, os elétricos não precisam seguir o rodízio.
Apesar dos incentivos pontuais aqui e ali, outra questão importante a se considerar para adoção do carro elétrico é a infraestrutura necessária para a transição de frota. A instalação de um carregador de veículo elétrico parte de R$ 2,9 mil, segundo informações da GreenV, empresa focada na instalação de totens de recarga. Em São Paulo há apenas cerca de mil pontos de carregamento (nacionalmente, são pouco mais de 1.200). Na União Europeia, por exemplo, recomenda-se um carregador para cada grupo de dez veículos elétricos.
Apesar do baixo número de estações de recarga, a GreenV acredita que os centros urbanos não devem ser o principal foco para instalação de novos pontos, uma vez que carros elétricos possuem mais de 250 km de autonomia de bateria e podem ser recarregados em uma tomada convencional.
A startup aposta em pontos de recarga em rodovias, cujas viagens são de longa duração. O desafio não é simples. Um eletroposto de carga rápida ou ultrarrápida nesses locais pode custar entre R$ 100 mil e R$ 500 mil devido a complexidade desse tipo de instalação.
Atualmente, já existem rodovias que contemplam pontos de carregamento ao longo do seu percurso, como é o caso da BR-277 no Paraná, que corta o estado, e a Rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo e Rio de Janeiro.
“Para que o modelo cresça ainda mais, é necessário que haja uma certa estruturação nas cidades para atenderem a demanda de carregamento, ou seja, significa a presença de pontos de recarga em alta escala”, diz Junior Miranda, CEO da GreenV. “Para isso, é importante termos investimento em tecnologia e Parceria Público-Privadas. Além disso, uma forma de acelerar essa transição é o auxílio do governo promovendo incentivos fiscais para que o setor se desenvolva e que os carros elétricos sejam mais baratos e acessíveis à população”, completa.
Outra questão pouco abordada é a adoção desse modelo elétrico sob a perspectiva do planejamento urbano. Atualmente diversos tipos de veículos podem ser movidos a eletricidade, mas a grande expectativa é com relação aos carros elétricos. No entanto, há uma preocupação sobre seguir investindo em automóveis particulares que, ainda que limpos, irão sobrecarregar ainda mais as vias da cidade. Uma melhor alternativa dentro desta perspectiva, segundo especialistas, seria apostar no transporte coletivo.
Para o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, em inglês), a eletromobilidade é uma tecnologia de zero emissão necessária e urgente para mitigar as emergências climáticas. Mas ela por si só não resolve o problema da mobilidade urbana.
Segundo Pedro Bastos, analista de transporte público do ITDP, é imperativo que ela seja prioritariamente empregada no transporte público, e orientada para atender populações e territórios mais vulneráveis.
Caso contrário, segundo ele, “trocaremos engarrafamentos poluentes para engarrafamentos não poluentes e mantendo inacessíveis as oportunidades a quem se desloca por outros modos”.
No entanto, de acordo com Bastos, colocar os ônibus elétricos na rua implica uma complexidade operacional que ainda desafia e desencoraja muito as cidades, até porque a formação de especialistas e técnicos qualificados para assumir esses projetos está em desenvolvimento.
“Paralelamente, muitos contratos de transporte público vigentes não possuem cláusulas que obriguem e/ou incentivem a adoção de tecnologias mais limpas. Como resultado, a adoção da eletromobilidade acaba correndo o risco de ficar travada, já que, nesses negócios, o critério de menor preço geralmente é o que vai predominar como custo-benefício”, afirma.
Para Sousa, da ABVE, o incentivo ao transporte individual, com subsídios e isenções de impostos, foi uma política dos anos de ouro do combustível fóssil. “Foi o que vimos nos últimos 15/20 anos. A eletromobilidade quebra inteiramente esse paradigma. Ela introduz o conceito de mobilidade compartilhada – compartilhamento de veículos, de modais e até de veículos autônomos”, diz.
São Paulo possui, hoje, apenas 18 ônibus totalmente elétricos, mas o prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirmou que o sistema de transporte público terá até o ano de 2024 cerca de 2.600 ônibus elétricos. Esta é mais uma medida para reduzir a emissão de poluentes cumprindo o Programa de Metas, que prevê que 20% da frota seja composta por ônibus elétricos até o fim de 2024, como parte das ações municipais para cumprimento da Lei de Mudanças Climáticas. A lei visa reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em 50% até 2028 e a zerar as emissões até 2038.
A expectativa é que, em 20 anos, toda a frota seja alterada, totalizando 14.400 ônibus elétricos na cidade. Seria a maior frota de ônibus urbanos do Ocidente, atrás apenas de Shenzhen e Pequim, na China.
A ABVE acredita que essa meta, se cumprida, terá um efeito multiplicador. “Muitas cidades brasileiras já anunciaram planos de adotar ônibus elétricos. Campinas, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba…”, diz o diretor de infraestrutura da entidade. “A eletrificação do transporte público está demorando um pouco mais para decolar porque é um tema fortemente regulado pelo poder público”, completa.
A inspiração para adoção desse modelo vem de fora. A cidade de Shenzhen, na China, foi pioneira na transição para uma frota de ônibus inteiramente elétrica. Apesar de o país possuir uma matriz energética majoritariamente baseada no carvão, a mudança, que começou em 2009, reduziu em 48% as emissões anuais de CO².
Desde outubro de 2017, mais de 30 cidades espalhadas pelo mundo assinaram a Declaração de Ruas Verdes e Saudáveis da rede C40, assumindo compromissos políticos para transformar suas frotas de ônibus em veículos de zero emissão.
No Brasil, esses benefícios poderiam ser ainda maiores considerando que 65% da energia elétrica do país é gerada por fontes renováveis. Pelo cálculo da ABVE, mesmo num cenário hipotético de eletrificação de 100% da frota nacional, o aumento da demanda de energia requerido seria da ordem de apenas 10%. Isto porque a maioria das recargas dos carros elétricos seria feita à noite, nas garagens, com a energia já disponível, como os celulares.
O futuro é promissor, mas não é imediato. Um estudo realizado pela Boston Consulting Group (BCG) e pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) mostra que, dependendo do cenário econômico no Brasil nos próximos anos, o número de veículos leves eletrificados pode corresponder a 432 mil unidades em 2030, representando algo em torno de 12% e 22% das vendas, e pode chegar a 1,3 milhões por ano em 2035.
Muitos afirmam que as dimensões continentais do país podem configurar ainda outra dificuldade para adoção do modelo elétrico. Entretanto, para Bastos, ainda que seja um desafio, isso não é fator de inviabilização. “Isso pode ser mais facilmente resolvido se a eletromobilidade virar uma agenda nacional, e não apenas das cidades”, diz. “A dimensão continental não foi empecilho, por exemplo, para a rodoviarização do país desde os anos 1950”, prossegue. “São mais desafios políticos do que geográficos”, finaliza.